quinta-feira, 30 de junho de 2022

Exposição ao acaso - Teixeira de Pascoaes 'Quem sonha é um lar aceso'


 

Saber o quê, onde, quando e porque pisamos alguns pisos é uma noção de consciência de nós para nós próprios. Mas há outras ocasiões em que o melhor é deixar-nos ao acaso, só sabendo porque lá vamos: pela expectativa de conhecer algo novo ou diferente, não nos debruçando demasiado sobre o assunto precisamente para saber sobre ele a partir do zero. Saber mais sobre algo que minutos antes, para nós, era nada dá-nos caso a belas descobertas.

Aconteceu-me recentemente, levado ao Museu Amadeo de Souza-Cardoso (Amarante). Não pelas obras de arte expostas (Paolo Pellegrin, excelente!), sim pelo encontro 'medúseo' e fortuito com um livro-compilação dos aforismos de Teixeira de Pascoaes, autoria de António Cândido Franco. Soado o nome, não é ignorância afirmar o desconhecimento - ignorância, porventura, seria ter pousado o livro e deixado à ignorância. Da estirpe de pensamento sabe-se logo, abrindo em qualquer uma das mais de duzentas páginas, o nível de intelecto – em concordância ou não com as nossas ideias ou características (algo que não deve fazer caso se queremos ser mais amanhã do que somos hoje).

O acaso pode ser mero acaso ou acaso auto infligido, o que não o deixar de ser considerado como acaso, por nos sujeitarmos à exposição, à saída daquilo que damos como adquirido do nosso conhecimento ou do nosso conhecido. Tirar as meias sem sabermos o que vamos calcar, sabendo que calos não havemos de ter, abre novos caminhos a serem calcados para chegar a pegadas recicladas.

De ‘Quem sonha é um lar aceso’, deixo várias passagens que marcam e deixam que pensar:

- «81. A dor é o génio do verbo, a alma da comédia, o combustível da alegria.»

- «46. A frase falada ou gravada na mesma lauda em que fulguram os relâmpagos, é quase sempre mais luminosa que a escrita numa substância que serve para embrulhos…»

- «2. Poesia é a Teologia dos heréticos.»

- «60. O remorso é o penedo a desentranhar-se em ondas de ternura: a fonte.»

- «24. O infinito envolve o espaço, e o tiquetaque do nosso relógio soa no coração da eternidade. Aonde não chega a razão, chega a inspiração.»

- «27. Falar de poesia moderna, ou de poesia antiga, é um absurdo. A poesia é uma essência, não é uma forma. E só as formas mudam. A energia elétrica é invariável; mas o que não tem variado, para melhor, a sua forma luminosa!»

- «30. A graça da inspiração é o ser espiritual mais belo e feminino que habita na caveira humana, o autêntico trono do Senhor. Todavia, a Musa escolhe a caveira dum Virgílio, e não a dum César Augusto.»

- «2. (…) Às vezes, basta um hálito de flor para que uma estrela se acenda na escuridão.»

- «18. As chamas dum incêndio verdadeiro são menos violentas que as chamas dum inferno que não existe.»

- «19. Não é o homem que endoidece. É a loucura que se humaniza. Assim o Verbo se fez Carne.»

- «27. A Criação vem da dor e o seu vestuário é de riso.»

- «41. (…) Justiça sem liberdade goza-a qualquer boi que tenha um bom pensador; liberdade sem justiça gozam-na todos os famintos. Aludo, é evidente, à liberdade espiritual e à justiça económica, sem as quais não haverá paz no mundo.»

- «68. A unidade é um atributo do Nada, uma qualidade do zero.»

Roberto Rivelino - 2022/06/30 – Helsínquia